Os cursos oferecidos pelo projeto piloto Mulheres Mil são todos na área do trabalho doméstico, com certificação de cuidadoras e cozinheiras. A iniciativa marca a primeira entrega do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) no âmbito da Política Nacional de Cuidados e promete transformar a realidade dessas profissionais.
Uma parceria entre ministérios, instituições federais de ensino e a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) ofereceu 900 vagas em todo o Brasil para formação profissional da categoria. Na Bahia, foram certificadas 137 trabalhadoras domésticas na função de cuidadoras de idosos no final de setembro.
Por meio de uma parceria entre o Instituto Federal da Bahia (IFBA) e escolas municipais, as aulas puderam acontecer de maneira descentralizada em Salvador, próximo às residências das trabalhadoras. Esse foi considerado um importante fator para o êxito da experiência.
Houve cursos no bairro Valéria, um dos mais violentos da cidade, território tomado pela disputa entre facções, e em outras cinco comunidades de baixa renda da Região Metropolitana: Sussuarana, Mata Escura, Canabrava e Doron.
Em Valéria, é comum que viaturas e policiais armados com fuzis estacionem na entrada do bairro, em frente ao Colégio Estadual Professora Noêmia Rego, onde aconteceram as aulas. Eleonice Lima, mulher negra de 63 anos, uma das mais velhas a acompanhar as aulas, conta que a violência urbana e a falta de segurança pública preocupam todas as trabalhadoras domésticas.
“A gente sai para os bairros nobres para cuidar das casas e pessoas de outras famílias, e acabamos sem poder cuidar de nossos próprios parentes”, lamentou Eleonice Lima. Com os filhos sozinhos em casa, ou em arranjos precários, essas cuidadoras não contam com ninguém para que suas famílias não sejam mortas pelo racismo das disputas territoriais.
A responsabilidade pela divulgação e seleção das alunas ficou com o sindicato da categoria, o Sindoméstico-Bahia, que completou 34 anos de existência este ano. Uma das diretoras da entidade, Milca Martins, foi aluna do curso. Sua história é de resistência e inspirou muitas colegas de sala.
Como tantas trabalhadoras domésticas do Brasil, ela foi vítima do trabalho infantil e do trabalho forçado: começou a trabalhar aos sete anos e, aos 12 anos, conseguiu fugir de uma relação cruel e violenta de escravidão a qual foi submetida. Foi encontrada suja e com fome, escondida atrás das lixeiras da rodoviária por um funcionário que a acolheu em sua família e cuidou dela como filha.
Milca desmaiou em seus braços e, ao acordar numa cama limpa, sendo bem cuidada por uma família negra, como ela, não encontrou forças para contar sua história. A pequena adolescente perdeu a voz e a memória por um ano. Só quando ouviu uma notícia sobre sua cidade natal, ela recobrou um pouco da memória e fala. Conseguiu reencontrar a mãe com a ajuda de seus cuidadores. Muito depois, encontrou também a coragem para a luta com a ajuda de Creuza Oliveira, uma das fundadoras do Sindoméstico-Bahia, do qual hoje Milca é diretora.
Resgate
Para muitas alunas, o curso chegou num momento em que elas estavam ‘no fundo do poço’ e representou um resgate, como foi para Luiza Santana. “Esse curso teve muitos benefícios e o primeiro deles foi me tirar de uma depressão em que eu estava entrando, na qual eu não sei se eu conseguiria sair sem ajuda de todas as profissionais que nos apoiaram durante o período que nós estudamos”, recordou.
“No momento que eu achei que não teria saída pra mim, encontrei no projeto das Mulheres Mil todas essas trabalhadoras domésticas, todo esse grupo, e consegui vencer”, completou Luiza Santana, para em seguida mencionar sobre a falta de escuta e afeto.
“Normalmente nós, trabalhadoras domésticas, não temos quem cuide de nós. Nós cuidamos muito e não somos cuidadas. É muito importante termos, no mínimo, uma pessoa que nos abrace, que esteja do nosso lado, que cuide de nós, que nos escute para que nós possamos a cada dia nos sentirmos melhor para trabalhar no cuidado do outro.” Na sequência, ela apresentou uma demanda por política pública de saúde mental para as trabalhadoras domésticas.
As histórias das trabalhadoras domésticas são de resistência na coletividade. Marinalva Barbosa foi uma das mulheres vinculadas ao sindicato que simboliza esse tipo de apoio. Ela busca apoiar as colegas de profissão para que superem as violências e consigam seus direitos. Ela mesma passou por situações de segregação racial nas casas em que trabalhou. “Na época eu achava ruim, mas não entendia por que o meu prato e copo eram diferentes dos de uso comum da casa. O prato era aquele com um quebradinho no canto; e copo, de extrato de tomate”, contou Marinalva Barbosa.
Apesar disto, ela não foi impedida de estudar, proibição muito comum entre trabalhadoras domésticas que dormem na casa de patrões e tem sua liberdade tolhida. Marinalva Barbosa trabalhou em casas de diferentes professores que a ajudaram a se matricular e concluir os estudos – do fundamental à graduação em Direito.
Agora, ela está estudando para passar na OAB e sonha em contribuir ainda mais com o sindicato e com a luta pela efetivação dos direitos da categoria. Ela foi uma das trabalhadoras indicadas pelo sindicato para apoiar o Instituto Federal na realização do curso nos bairros. Era sua responsabilidade monitorar a frequência das alunas e auxiliar na execução financeira e administrativa do curso. Ela foi uma das que prestava o tão importante e mencionado apoio às alunas, um diferencial que impactou tão positivamente as taxas de permanência e conclusão.
Os cursos também estão sendo oferecidos nas periferias dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Sergipe e Maranhão. No Rio, foram ofertadas inicialmente quarenta vagas e as mulheres que participaram dos quatro meses de aulas também já estão diplomadas. Elas se formaram no dia 17 de setembro, em cerimônia de formatura com a presença do Governo Federal, representado pela Secretaria Nacional de Cuidados e Família do MDS.
Fonte: Site MDS.