Pouco menos de dois meses atrás, Maria Lúcia*, 57 anos, foi resgatada em situação análoga à de escravidão em uma residência de Campina Grande (PB), onde foi empregada doméstica por 39 anos. Além de trabalhar sob pressão psicológica, Maria era submetida a jornadas exaustivas em um ambiente degradante e insalubre, segundo o MPT (Ministério Público do Trabalho).
Foto: DIVULGAÇÃO / MPTMG
Desde 2017, sua carga de trabalho aumentou para mais de 17 horas diárias (das 7h até após a meia-noite), inclusive aos sábados e domingos, depois que os patrões adotaram 100 cães, restando à trabalhadora os cuidados com a alimentação dos animais, a limpeza de suas fezes e dos locais de abrigo. Lidiane Barros, auditora do MPT responsável pelo resgate, afirmou que a vítima “vivia um processo de coação psicológica que a levava a aceitar as condições indignas de trabalho”.
No início de fevereiro, uma mulher com deficiência intelectual que trabalhava como doméstica durante 40 de seus 55 anos foi resgatada de uma situação análoga à escravidão em Campo Bom (RS). Ela não possuía vínculo de emprego reconhecido nem limitação de sua jornada de trabalho diária ou semanal.
Era impedida de conviver e se relacionar com as pessoas de sua família, sofria agressões físicas e morais e não podia conversar com pessoas estranhas à família dos patrões ou sair da residência sem autorização da empregadora.
A deficiência intelectual e a falta de recursos financeiros e de um laço familiar fora daquela residência a impediam de fugir dali, e o caso só chegou ao conhecimento do MPT devido às denúncias de vizinhos, que presenciaram agressões, ofensas e ameaças à vítima.
Resgates similares, também envolvendo domésticas, foram registrados na mesma semana em Mossoró e Natal, no Rio Grande do Norte. Casos como esses surgem mês a mês no país, mas podem ser muito mais frequentes, segundo Lys Sobral Cardoso, coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, do MPT.
Isso ocorre porque, segundo ela, diversas categorias do trabalho escravo de mulheres são invisibilizadas – cada uma à sua maneira. “O trabalho doméstico, por exemplo, é um trabalho que todos conhecem, mas sua superexploração acaba sendo aceita na sociedade”, explica ao R7.
Dos resgates registrados no país entre 2003 e 2018, segundo estudo da Repórter Brasil em parceria com a OIT (Organização Internacional do Trabalho), 5% foram de mulheres. De acordo com a Detrae (Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo), vinculada à Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, o número de mulheres resgatadas representou 10% do total em 2021.
Se a pessoa não tem opção real de vida, ela não vai sair dessa situação mesmo. Temos até hoje, na polícia e no Judiciário, a ideia de que a pessoa poderia sair e não sai.
Lys Sobral Cardoso
Para Lys Sobral, embora a maioria dos trabalhadores seja composta de homens, o percentual entre 5% e 10% de mulheres resgatadas em condições análogas à escravidão não representa a realidade.
“O número de mulheres é maior que o de homens, e elas estão inseridas no mundo do trabalho como um todo”, diz ela, que aponta o enfrentamento à escravidão das mulheres como um dos grandes desafios no combate ao trabalho escravo em 2022 e nos próximos anos no Brasil.
Devido a esse apagamento, além de as vítimas não terem seus direitos garantidos e continuarem em situação de escravidão, os dados subnotificados e não contabilizados inviabilizam o planejamento de políticas públicas efetivas.
A coordenadora do MPT pondera que há diversas formas de naturalizar o trabalho escravo feminino, o que colabora com a subnotificação do número de vítimas. “Em muitos casos, ou não se compreende que se trata de trabalho escravo ou se sabe que é errado mas há o medo de falar e também de denunciar e não resultar em nada”, afirma.
Tipos invisibilizados de escravidão contemporânea
Entre as formas de escravidão contemporânea que não entram na conta e fazem com que os casos sejam subnotificados, Lys Sobral destaca três: o tráfico de pessoas, o trabalho escravo doméstico e a exploração sexual.
A coordenadora do MPT explica que o tráfico de pessoas é desconsiderado como forma de escravidão no Brasil, inclusive com dados e informações desagregados dos órgãos trabalhistas, e relembra que, segundo relatório da ONU, aproximadamente 70% das vítimas são mulheres – o que pode ser um indício da subnotificação no país.
“É preciso compreender que o tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho humano também é uma forma de escravidão contemporânea e precisa ser tratado pelos órgãos trabalhistas, com dados agregados à escravidão contemporânea”, afirma.
Se o trabalho escravo pode ser uma vergonha [para as vítimas], algumas das formas que acometem as mulheres são ainda mais difíceis de falar — e justamente por isso têm de ser combatidas.
Lys Sobral Cardoso
Em segundo lugar está o trabalho escravo doméstico. Uma vez que a mulher é socialmente direcionada aos afazeres domésticos, são elas as principais vítimas da superexploração dessa atividade.
As trabalhadoras se encontram inseridas nas famílias, muitas vezes a única forma de convívio social, e, além de não possuírem recursos financeiros para romper com a situação na qual se encontram, nem sequer sabem que são vítimas da exploração de seu trabalho.
“O trabalho doméstico traz desafios a mais à fiscalização trabalhista porque acontece no âmbito das residências, onde a relação é diferente”, explica Lys Sobral. A coordenadora do MPT diz ainda que há protocolos e cuidados específicos nos resgates. Primeiro, para entrar na casa dos empregadores, é necessária uma autorização judicial prévia.
Dentro da casa, considerando-se a possibilidade de não configuração do trabalho escravo, a abordagem deve ser mais cautelosa. “Quando se configura, deve haver muito cuidado com as vítimas e a situação delas. Enfrentamos muitas complicações pelo fato de a pessoa vitimada entender que se trata da única família que ela tem, e romper esse vínculo é muito difícil”, prossegue.
Assim, a rede de assistência à resgatada deve atuar em várias frentes: o primeiro contato pós-resgate com uma assistente social e a seguir a avaliação da necessidade de outros atendimentos, como médico, psicológico e odontológico.
“Nesses casos, a ação da assistência tem que ser imediata, porque é muito difícil para a vítima, um vazio muito grande, e pode gerar uma lesão irreparável. São anos [com a família], e muitas vezes a pessoa não estuda, não tem família nem recursos para sair dali”, explica.
De modo geral, conta Lys Sobral, entre as trabalhadoras domésticas resgatadas recentemente, mesmo após muitos anos, se observa nas entrevistas a dificuldade de comentar as atividades. “É muito duro falar daquilo porque é a única referência de família ou convívio que tinham”, afirma. “O ideal é que, quando formos fiscalizar, a ação seja rápida e já tenhamos que aproximar a rede de apoio [delas] para dar um suporte.”
Por fim, a respeito da exploração sexual, a procuradora do trabalho explica que, como o trabalho sexual em si não é proibido, a dificuldade está em reconhecer a superexploração. “Enfrentamos muitos desafios na esfera do trabalho para reconhecer direitos, garantir carteira de trabalho e remuneração àquela pessoa”, ressalta. Assim como no caso do trabalho doméstico, o enfrentamento da exploração sexual é delicado, considera Lys Sobral.
“É preciso ir com pessoas preparadas com sensibilidade porque a conversa é mais complicada. É um pouco diferente de chegar ao trabalhador rural, que está ali, sofrendo, e com a situação de escravidão constatada. Na exploração sexual, há muitos casos que passam batido”, diz Lys. “Além disso, são pontos que entram nos gargalos sociais. Se o trabalho escravo pode ser uma vergonha [para as vítimas], algumas das formas que acometem as mulheres são ainda mais difíceis de falar, e justamente por isso têm de ser combatidas.”
Quem são as mulheres resgatadas da escravidão no país
Entre 2003 e 2018, segundo o estudo da Repórter Brasil em parceria com a OIT, 35.943 trabalhadores foram resgatados de situação análoga à de escravidão no Brasil. Nos registros, 1.889 (5%) eram mulheres.
Entre as ocupações mais registradas, nenhuma das três citadas por Lys Sobral como invisibilizadas aparece na lista, o que reforça os indícios de subnotificação: 71,3% eram trabalhadoras rurais, 8,1% atuavam como cozinheiras, 7,8% como costureiras, 2,5% eram operadoras no processo de moagem e 1,3% carvoeiras. Os 8,9% restantes se encaixavam em outras formas de trabalho.
Todas as categorias foram baseadas nas guias para a concessão do seguro-desemprego, em que se registram as atividades das pessoas submetidas ao trabalho escravo.
Se perceber, denuncie, porque tem quem faça algo a respeito. E aí começamos a receber mais denúncias, e as pessoas ganham confiança na denúncia. É um círculo.
Lys Sobral Cardoso
Mais da metade dessas mulheres – entre as 770 que informaram raça – eram pretas (11%) ou pardas (42%). Brancas eram 25%, amarelas, 20%, e indígenas, 2%. Do total, quase dois terços (62%) não haviam concluído o ensino fundamental.
As faixas etárias predominantes eram de 30 a 39 anos (32,6%) e de 40 a 49 anos (26,7%), seguidas por 50 a 59 anos (17,7%) e 20 a 29 anos (13,3%). Mulheres idosas eram 9% do total, e as de 13 a 19 anos representavam 0,8%.
Em relação aos estados, o Maranhão registrou 16,4% dos casos, seguido por Pará (12,8%), Minas Gerais (10,6%), Bahia (10,4%) e São Paulo (10,2%).
A pesquisa do Detrae, divisão da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho do governo federal, com dados de 2021, também coletados a partir das guias de seguro-desemprego, indica resultados parecidos.
As ocupações mais comum entre as resgatadas no ano passado eram as de trabalhadoras volantes na agricultura (36), mulheres na cultura do café (32) e na pecuária (32). O estado com mais registros foi Minas Gerais, com 26,9% dos casos. Em sequência vieram Bahia (19,7%), São Paulo (16,6%), Maranhão (10,9%) e Piauí (7,8%). Mais uma vez, a faixa etária mais comum foi a de 30 a 39 anos, com 25,9%.
De acordo com o estudo do Detrae, 24,9% dessas mulheres tinham estudado até o 5º ano do ensino fundamental, 40,9% recebiam até um salário mínimo e 61,7% se autodeclararam pardas, mulatas, caboclas, cafuzas, mamelucas ou mestiças de preto.
Como identificar e denunciar os casos
A denúncia de um caso de trabalho escravo pode ser feita por meio do Disque 100. A notificação do Ministério Público do Trabalho pode ser feita pelo MPT Pardal, aplicativo disponível nos sistemas Android e iOS. A Detrae, divisão do governo federal, recebe denúncias por meio deste link.
Lys Sobral Cardoso explica que três fatores fecham o ciclo do trabalho escravo: a situação de vulnerabilidade socioeconômica das pessoas exploradas, a ganância de quem explora, do ponto de vista do empregador, e a impunidade.
“As condições das pessoas melhoram, com oportunidades reais de trabalho, quando se assegura o básico – educação, trabalho e renda – e, para combater a ganância, se garante que não haja impunidade. Nisso se fecha o ciclo, porque a pessoa sabe que, se estiver nessa situação, tem quem faça algo, e os empregadores também saberão que vai haver punição”, comenta a coordenadora do MPT.
Por isso Lys Sobral faz um apelo pela ampliação do debate e pela conscientização das pessoas sobre o tema.
“A sociedade precisa ser esclarecida de que isso não pode. Se perceber, é preciso denunciar, porque tem quem faça algo a respeito. E aí começamos a receber mais denúncias, e as pessoas ganham confiança na denúncia. É um círculo, as coisas caminham umas para as outras”, prossegue.
A promotora do trabalho afirma que, ao se tratar do conceito de trabalho escravo, “não estamos mais falando de pessoas trancafiadas num cadeado ou grilhão, pois enfrentamos essa resistência até hoje”.
O bem jurídico que se tutela com o crime da escravidão, continua, é a dignidade do trabalhador e da trabalhadora. “Nisso, se inclui a fome, por exemplo. Se a pessoa não tem opção real de vida, ela não vai sair dessa situação mesmo. Temos até hoje, na polícia e no Judiciário, essa ideia de que a pessoa poderia sair e não sai”, conclui.
O trabalho análogo à escravidão moderna pode ser identificado por qualquer um ao ter os seguintes elementos:
– trabalho forçado (indivíduo submetido à exploração, sem poder deixar o local por causa de dívidas ou ameaças);
– jornada exaustiva (horas diárias ou dias por semana desgastantes, que ponham em risco a saúde);
– servidão por dívida (trabalho por dívidas ilegais que “prendam” o trabalhador à atividade);
– condições degradantes (elementos que indiquem a precariedade do trabalho, como alojamento precário, alimentação de baixa qualidade, maus-tratos, ausência de assistência médica, saneamento básico e água potável).
* Nome alterado para proteger a identidade da vítima.
Fonte: R7
Idosa ‘escravizada’ em bairro nobre de SP ganha indenização de R$ 350 mil
A Justiça determinou que uma trabalhadora doméstica mantida em situação análoga à escravidão em uma casa na região do Alto de Pinheiros, área nobre da capital paulista, receba R$ 350 mil de indenização por danos morais. O montante deve ser pago pelos ex-patrões.
A decisão judicial foi confirmada pela 12ª Turma do TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região) na última quinta-feira (17), quando também foi retirado o segredo de justiça do processo. Ainda cabe recurso.
A mulher foi resgatada em junho de 2020 em uma operação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Civil, depois de uma denúncia anônima feita por meio do Disque-100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Além da indenização, a Justiça também determinou que ela tenha seus direitos trabalhistas reconhecidos, como a assinatura da carteira e o recolhimento de salários, contribuição previdenciária e FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviços).
Apesar de ter trabalhado para família desde o fim dos anos 1990, a idosa só pode receber os valores referentes ao intervalo entre 2015 e 2020 devido à regra da prescrição, que prevê uma limitação para cobranças antigas.
Somente os valores dos cinco anos anteriores à ação podem ser pagos. O reconhecimento do tempo de trabalho, para o direito à aposentadoria, por exemplo, é mantido, mesmo sem os pagamentos.
Para o juiz federal Jorge Eduardo Assad, relator do caso na 12ª Turma, os três ex-patrões -mãe, filha e o marido desta- não conseguiram provar que a mulher era apenas uma diarista, sem vínculo de longo prazo com a família, nem mesmo que ela era autônoma.
Em depoimentos, eles disseram que ela trabalhava também para outras pessoas na vizinhança e defenderam que não havia vínculo de trabalho.
Assad considerou que o depoimento da antiga empregada tornou a situação dos ex-patrões ainda mais grave. Ela teria dito que eles “não lhe batiam, eram amigos e a ajudavam”.
“Veja-se que, não estamos falando de uma situação normal de trabalho, mas de uma forma de submissão da pessoa ao talante [vontade] de outras que a explora, negando-lhes a condição de empregada e até de ser humano, na medida em que, as submete a uma condição definida por lei como análoga à de escravo”, escreveu.
Os três ex-patrões também foram condenados a pagar R$ 300 mil por danos morais coletivos, dinheiro que deve ser recolhido ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Os valores foram aumentados pelo TRT -na primeira instância, o dano coletivo havia sido calculado em R$ 100 mil, e o individual, em R$ 250 mil.
Somado à indenização para a empregada doméstica, os réus devem pagar um montante total de ao menos R$ 650 mil.
A reportagem tentou entrar em contato com um dos advogados de defesa dos ex-patrões, mas não conseguiu até a publicação do texto.
Idosa vivia em depósito e dormia em sofá velho Segundo o Ministério Público do Trabalho apurou na época do resgate, a mulher começou a trabalhar com a família em 1998 e permaneceu por 13 anos sem registro formal em carteira. Sem direito, portanto, a férias ou 13º salário.
A partir de 2011, ela foi morar em uma casa de uma outra pessoa da família, pois o imóvel em que vivia desabou. Continuou trabalhando como empregada, mas deixou de receber salário. Ela havia se mudado em 2017 para a casa de onde foi resgatada.
Lá, ela vivia em um quarto nos fundos do terreno, que funcionava como uma espécie de depósito, com cadeiras, estantes e caixas amontoadas. Um sofá velho era usado como cama e não havia banheiro.
Para a Justiça, a família admite que havia prestação de serviço somente entre 1998 e 2011 e somente como diarista. O depósito, a que eles chamam de edícula na ação, seria usado apenas eventualmente pela mulher para dormir. Segundo eles, ela não morava lá.
Para o juiz relator do caso, o histórico das relações entre a doméstica e a família foi se deteriorando ao longo dos anos. “Chegando a extremos, não apenas pelo pagamento de salário muito inferior ao mínimo, mas envolvendo a liberdade da obreira”, afirmou.
Ex-patrões são condenados ao semi-aberto A Justiça também condenou os três ex-patrões com base no artigo 149 do Código Penal: reduzir alguém à condição análoga à de escravo. As penas foram fixadas em dois anos e oito meses de reclusão em regime semi-aberto.
Para o juiz Silvio César Arouck Gemaque, da 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo, a vítima foi tratada “como objeto, não como pessoa humana, na medida em que não recebeu as mínimas condições condizentes.”
“Os réus aproveitaram-se do fato de a vítima ser uma pessoa simples, como ficou evidenciado, para obterem vantagem em detrimento de um semelhante”, escreveu na sentença de janeiro de 2022. Eles ainda podem recorrer.
Fonte: Yahoo!