“Era este quadrado aqui.” Com as mãos, a doméstica aposentada Maria do Carmo de Jesus, 64, explica à reportagem do TAB o tamanho dos quartos onde dormiu por cerca de 50 anos. Dá metade do tamanho de sua cozinha.
Há 10 anos, Do Carmo, como é conhecida, pôde deixar o “quartinho da empregada” para viver em casa própria, um apartamento de pouco mais de 40m² com sala de estar, mesa para refeições e cozinha ampla, onde faz suco de jenipapo e um feijão capaz de perfumar o corredor inteiro. Por fim, dois quartos: um com cama de casal, onde Maria dorme, e outro com cama de solteiro para receber familiares e equipamentos de ginástica para seus alongamentos.
A casa dispõe do item que tanto faltou na vida pregressa de Maria: janelas. Do terceiro andar, recebe o calor do sol, que costuma ser generoso na capital baiana, e consegue olhar a movimentação do seu prédio e da vizinhança. Vive sozinha, mas se sente acompanhada. “Moro com Deus”, diz.
O apartamento fica no Condomínio 27 de Abril, no Cabula, bairro de classe média-baixa em Salvador. Este é o primeiro conjunto habitacional feito para abrigar exclusivamente as trabalhadoras domésticas, sem custos de locação. O nome faz alusão ao Dia Nacional da Empregada Doméstica, data que homenageia Santa Zita, considerada a padroeira das diaristas.
A construção, entregue em setembro de 2012, foi fruto de uma parceria entre um sindicato da categoria, uma federação e os governos estadual e federal da época. O plano era criar projetos em sete estados brasileiros, incluindo Pernambuco e Rio de Janeiro, mas apenas em Salvador houve liberação governamental para seguir adiante.
“O direito à moradia sempre foi uma luta da nossa classe”, explica Creuza Maria Oliveira, 65, atual presidente e uma das fundadoras do Sindicato das Domésticas da Bahia.
Com 80 apartamentos divididos em quatro blocos, os prédios prestam homenagem póstuma a sindicalistas que atuaram pelos direitos das profissionais do lar. Os conjuntos bege e rosa-claro têm nome de mulher: Maria José Alves, Maria das Graças, Teófila Nascimento e Lenira de Carvalho.
A seleção foi realizada pelo sindicato e obedeceu a critérios. Era preciso que a doméstica comprovasse que vivia de aluguel ou na casa dos patrões. Também era importante que ela tivesse carteira assinada. Uma exigência do sindicato com a prefeitura é que a escritura da casa ficasse no nome das mulheres e não no de eventuais companheiros, como uma forma de preservá-las.
Novos horizontes
“Fiquei tão feliz quando recebi a chave da casa que abracei as paredes”, conta Do Carmo, emocionada. Natural de Amargosa (BA), ela ouvira de uma senhora que um casal de Salvador estava interessado em lhe oferecer comida, roupa e estudo, caso ela topasse viajar mais de 200 km para ir viver com eles na capital. Cansada da escassez e cheia de sonhos, a menina foi — ela tinha 10 anos na época.
Na casa, a matriarca botava Do Carmo para fazer tudo. “Eu subia no banco para botar água na panela. Também tinha que subir no banco para estender roupa e forrar os beliches da casa. Era um bocado de criança”, conta.
Nos primeiros dias de trabalho não remunerado, Maria do Carmo ficou doente. A família pensou em devolvê-la à senhora que a vendeu, mas, imaginando que a mulher não aceitaria desfazer o negócio, resolveu mantê-la. Em vez de estudo e roupa, Do Carmo só recebia restos de comida.
“Depois que todo mundo terminava de comer, a dona raspava o prato de todos e ajeitava aquela sobra para eu comer. Isso minha mãe fazia no interior com os porcos, para que engordassem. Aí pensei: ‘essa mulher tá pensando que eu sou o que? Uma porca?’.”
Enquanto a patroa a chamava de ingrata, Maria decidiu fazer greve de fome, trancada no quartinho. “Lá para o quinto dia, ela começou a ficar desesperada porque eu podia morrer. Como é que ela ia me enterrar sem documentos?”, relembra.
Maria acabou sendo devolvida pelo casal de Salvador, mas não se livrou do destino de trabalhar, e por vezes viver em casas de família. Perdeu as contas de quantos patrões teve e quantos banheiros e cozinhas limpou. Finalmente, conseguiu se aposentar em 2021.
Mulheres e crianças
Valdirene Boaventura, 40, habita o andar de baixo de Maria do Carmo. Desempregada há um pouco mais de um mês, mal se lembra da última vez em que ficou sem trabalhar. “Vinte dias depois do parto do meu [filho] mais novo, já estava trabalhando. Me mandaram ir e eu ia com o recém-nascido no colo”, conta.
Ela já foi diarista, babá, cozinheira e cuidadora de idosos, com certificados na área. De todas as funções, gostou das que trabalham diretamente com o cuidado de pessoas, preferência que talvez venha do seu interesse pela área da psicologia.
Boaventura conseguiu terminar o ensino médio via supletivo em 2021. Agora com os filhos crescidos, talvez consiga fazer uma faculdade. Está dividida entre psicologia e direito. A aptidão na área jurídica vem da atuação como voluntária no Sindicato há mais de 10 anos.
A doméstica costumava viver de aluguel com o salário que recebia. Só precisou recorrer à casa dos patrões aos 24 anos, quando se separou do pai do primeiro filho. Vítima de ameaças, deixou a casa e se refugiou no trabalho por dez meses, até a situação se abrandar. Depois desse episódio, não voltou a viver no “quartinho”, o que não significa estabilidade. Quando tinha trabalho, pagava aluguel; quando não tinha, ia para a casa da ex-sogra, familiares e demais conhecidos.
As constantes mudanças só pararam quando assinou a posse de uma unidade no 27 de Abril. “A entrega foi uma benção porque eu estava bastante fragilizada diante daquela situação. Chorei tanto quando percebi que tinha uma casa para dar para o meu filho… Foi gratificante.”
Nesse lar teve mais dois filhos e hoje divide os cômodos com os três: Tiago, 16, Ilana, 8, e Inácio, 6. No condomínio, além de comerem o feijão da “tia Carminha” (como chama Maria do Carmo), os mais novos brincam e correm pelo parque, enquanto o mais velho pode sair com os amigos para jogar futebol no campo que fica ao lado da casa.
O conjunto é repleto de crianças, os filhos das moradoras. Poucos homens habitam os prédios. A maioria das famílias é monoparental.
Infância roubada
A infância de Valdirene lembra a de Maria do Carmo. Nascida em Camacã, no sul da Bahia, Valdirene também foi vítima de um golpe e foi para a capital, a mais de 600 km de distância, sob a promessa de que receberia salário para trabalhar na casa de uma família que vivia na Federação, bairro de classe média-alta.
“A patroa chegou a me pagar o primeiro salário, mas nunca mais houve pagamento. Passei a cuidar da casa sob ameaça e, quando terminava, ela me trancava no quartinho para que não saísse.”
Em dia de festa de São João, a menina conseguiu fugir. Sem conhecer nada da cidade, foi até a polícia e explicou o que estava vivendo. Naquele dia, o oficial pegou a lista telefônica, anotou o endereço do sindicato dos trabalhadores domésticos e entregou o papelzinho à garota.
No Sindicato, Valdirene foi acolhida por Creuza Maria Oliveira, que denunciou a situação da menina ao Ministério Público. Até hoje, por gratidão, Valdirene chama Creuza de mãezinha.
Segundo Creuza, após três anos da denúncia, o Ministério Público deu o caso como improcedente e arquivou o processo.
Sonho da casa própria
No Brasil, 92% das pessoas ocupadas no trabalho doméstico são mulheres, e 65% delas são negras, de acordo com o IBGE. Pelo último Censo, a maioria possui entre 30 e 59 anos.
As trabalhadoras que não vivem na casa dos patrões costumam pagar aluguel em bairros periféricos ou vivem em barracos e casas construídas em terrenos irregulares, correndo risco permanente de desapropriação.
“Antes dos programas como o Minha Casa, Minha Vida, era necessário ganhar no mínimo R$ 1.500 para entrar em um programa de moradia. O valor estava fora de cogitação para as empregadas domésticas, então nós acabávamos em barracos e ocupações, junto com outros trabalhadores”, conta Creuza.
Segundo o relatório “Trabalho Doméstico no Brasil” desenvolvido pelo IBGE, divulgado em maio, o rendimento médio nacional das trabalhadoras domésticas caiu de R$ 1.016 para R$ 930 — abaixo do valor do salário mínimo. Houve queda em todas as regiões do país.
No caso do Nordeste, por exemplo, de R$ 670 em 2019, as trabalhadoras passaram a receber em média R$ 615 por mês.
Para complementar a renda, muitas moradoras do 27 de Abril trabalham com reparo de roupas e trançagem de cabelos. Também vendem gelinho e os clássicos bijus, feitos com coco, açúcar, sal e goma de tapioca. O doce completa o café da manhã ou da tarde nos lares soteropolitanos.
Parque, pátio e horta
Quem vai até o Condomínio 27 de Abril encontra muros e cercas elétricas. No interior, há amplo espaço para carros, um parque para as crianças brincarem e até uma horta comunitária com temperos frescos e flores. Nem sempre o espaço foi assim, limpo e conservado, mas não por falta de manutenção das moradoras. Havia muita algazarra na vizinhança.
Descontentes com o programa habitacional gratuito e restrito às empregadas domésticas, vizinhos foram tomados pelo preconceito. Como ainda não havia muros em 2002, eles invadiram os apartamentos e quebraram o espaço feito para a creche (até hoje desativado). Havia assaltos e estupros. A violência da região fez muitas moradoras abandonarem os prédios. Algumas acabaram voltando anos depois.
As histórias dessas mulheres estarão presentes no documentário “27 de Abril”, a ser lançado em setembro, em sincronia com o aniversário de dez anos do Conjunto. A obra tem roteiro assinado por Benito Juncal e Carollini Assis. Em parceria com a Neojibá (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia), a trilha sonora será comandada por uma orquestra composta por crianças, adolescentes e jovens em situações de vulnerabilidade social — em sua maioria, são filhos de profissionais do lar.
Benito Juncal conta que a obra será “uma espécie de Edifício Master da Bahia”, citando o filme dirigido por Eduardo Coutinho, que registra o cotidiano dos moradores do Edifício Master, em Copacabana.
Apesar de já ter se passado uma década, do Carmo ainda se lembra com detalhes do dia em que recebeu as chaves do lar. Sentiu uma alegria tão forte em seu coração que achou que estava tendo um enfarto.
“Pedi para Deus: ‘Senhor, não me leva agora! Me deixe viver esse momento’.”. Hoje, ainda fala do condomínio com os mesmos olhos cheios de afeto.
Transcrição de reportagem do Portal UOL do dia 28 de maio de 2022.